Como se estivessem em uma conversa informal, o cronista tende a dialogar sobre fatos com o leitor...

13/06/2017

Emergência


É fácil identificar o passageiro de primeira viagem. É o que já entra no avião desconfiado. O cumprimento da aeromoça, na porta do avião, já é um desafio para a sua compreensão.

__ Bom dia ...

__ Como assim?

Ele faz questão de sentar num banco de corredor, perto da porta. Para ser o primeiro a sair no caso de alguma coisa dar errado. Tem dificuldade com o cinto de segurança. Não consegue atá-lo. Confidencia para o passageiro ao seu lado:

__ Não encontro o buraquinho. Não tem buraquinho?

Acaba esquecendo a fivela e dando um nó no cinto. Comenta, com um falso riso descontraído: "Até aqui, tudo bem". O passageiro ao lado explica que o avião ainda está parado, mas ele não ouve. A aeromoça vem lhe oferecer um jornal, mas ele recusa.

__ Obrigado. Não bebo.

Quando o avião começa a correr pela pista antes de levantar vôo, ele é aquele com os olhos arregalados e a expressão de Santa Mãe do Céu! no rosto. Com o avião no ar, dá uma espiada pela janela e se arrepende. É a última espiada que dará pela janela.

Mas o pior está por vir. De repente ele ouve uma misteriosa voz descarnada. Olha para todos os lados para descobrir de onde sai a voz.

"Senhores passageiros, sua atenção, por favor. A seguir, nosso pessoal de bordo fará uma demonstração de rotina do sistema de segurança deste aparelho. Há saídas de emergência na frente, nos dois lados e atrás."

__ Emergência? Que emergência? Quando eu comprei a passagem ninguém falou nada em emergência. Olha, o meu é sem emergência.

Uma das aeromoças, de pé ao seu lado, tenta acalmá-lo.

__ Isto é apenas rotina, cavalheiro.

__ Odeio a rotina. Aposto que você diz isso para todos. Ai meu santo.

"No caso de despressurização da cabina, máscaras de oxigênio cairão automaticamente de seus compartimentos."

__ Que história é essa? Que despressurização? Que cabina?

"Puxe a máscara em sua direção. Isto acionará o suprimento de oxigênio. Coloque a máscara sobre o rosto e respire normalmente."

__ Respirar normalmente? A cabina despressurizada, máscaras de oxigênio caindo sobre nossas cabeças __ e ele quer que a gente respire normalmente?

"Em caso de pouso forçado na água ..."

__ O quê?!

"... os assentos de suas cadeiras são flutuantes e podem ser levados para fora do aparelho e ..."

__ Essa não! Bancos flutuantes, não! Tudo, menos bancos flutuantes!

__ Calma, cavalheiro.

__ Eu desisto! Parem este troço que eu vou descer. Onde é a cordinha? Parem!

__ Cavalheiro, por favor. Fique calmo.

__ Eu estou calmo. Calmíssimo. Você é que está nervosa e, não sei por que, está tentando arrancar as minhas mãos do pescoço deste cavalheiro ao meu lado. Que, aliás, também parece consternado e levemente azul.

__ Calma! Isso. Pronto. Fique tranquilo. Não vai acontecer nada.

__ Só não quero mais ouvir falar em banco flutuante.

__ Certo. Ninguém mais vai falar em banco flutuante.

Ele se vira para o passageiro ao lado, que tenta desesperadamente recuperar a respiração e pede desculpas. Perdeu a cabeça.

__ É que banco flutuante foi demais. Imagine só. Todo mundo flutuando sentado. Fazendo sala no meio do oceano Atlântico!

A aeromoça diz que lhe vai trazer um calmante e aí mesmo é que ele dá um pulo:

__ Calmante, por quê? O que é que está acontecendo? Vocês estão me escondendo alguma coisa!

Finalmente, a muito custo, conseguem acalmá-lo. Ele fica rígido na cadeira. Recusa tudo que lhe é oferecido. Não quer o almoço. Pergunta se pode receber a sua comida em dinheiro. Deixa cair a cabeça para trás e tenta dormir. Mas, a cada sacudida do avião, abre os olhos e fica cuidando a portinha do compartimento sobre sua cabeça, de onde, a qualquer momento, pode pular uma máscara de oxigênio e matá-lo do coração.

De repente, outra voz. Desta vez é a do comandante.

__ Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de ...

Ele pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto:

__ Olha para a frente, Araújo! Olha para a frente!

Luis Fernando Veríssimo (In "O rei do rock", Porto Alegre, Globo, 1978, p.74-5)



SOZINHOS

Esta idéia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a idéia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os fi­lhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
- Ronca.
- Não ronco.
- Ele diz que não ronca - comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visi­tam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
- Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer - diz ela. E em seguida tem a idéia infeliz. - É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
- Humrfm - diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. As idéias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagi­ne se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias idéias e dei­xado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me com­parar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acom­panhar, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de con­trolar a demência solta no mundo é deixar os escritores falando sozi­nhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas m poucos minu­tos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita.
Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
- Rarrá! - diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
- Rarrá! - diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio - por causa dos roncos - não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes. É um diálogo sussurrado.
"Estão prontos?"
"Não, acho que ainda não..."
"Então vamos voltar amanhã..."

Luis Fernando Verissimo - Comédias Para Se Ler na Escola

Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora